Opinião
SAÚDE
16/09/16
16/09/16
Hugo Sanches é especializado em saúde mental e psiquiatria e mestre em enfermagem de saúde mental e psiquiatria pela Escola Superior de Saúde de Leiria desde 2012. Para ele a luta continua no serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco.
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A saúde mental a falar-se maisOuçamos o tema Mad World dos Tears for Fears mas interpretado por Gary Jules. Esta sugestão prende-se com o caminho deste texto.
Espero não ser controverso o suficiente para castigos ou eventuais moções de censura. Quero ser apenas parcialmente controverso. Assim-assim… A opinião é isso mesmo. Vejo o mundo daqui de dentro do meu ser e venho opinar sobre o maior bem da actualidade, capaz de subverter o maior jackpot do Euromilhões. Nesta soberba vou tentar ser abrangente e simultaneamente conciso. Vou falar de Saúde. Mas não vou falar da ausência da doença nem da cura. Sou dos que sonham com panaceias não farmacológicas. Aos lenitivos deixo-os na prescrição de socialização diária e comunicação constante. A comunicação é vida. Vou falar de Saúde Mental – aquela veia da saúde onde comunicar é essencial. Em 1986 o mundo moderno assistiu à configuração da Carta de Otawa. Uns senhores e senhoras assim pensaram e assim redigiram e no seu primeiro fundamento dos pilares essenciais para a promoção de saúde surgem-me logo no pensamento uns versos de Sérgio Godinho no tema completo chamado de “Liberdade”. E no seguimento disto tudo o ser humano será livre de escolher. Por isso escolham agora desistir de ler isto aqui escrito ou então esperem só mais um pouco. Prometo que serei pertinente. É difícil falar de saúde sem falar em doença. A saúde mental é uma temática rara. Nas ruas ecoam outros gritos: doente mental, atrasado mental, introvertidomental, atrevidómental, preguiçosomental, ovomaltomental e ovniologomental… E quem é que fala de saúde mental? Quem é que tem a coragem de arriscar? Talvez o José Mário Branco. Mas por enquanto “Ser solidário” é mais sensato do que ouvir os 20 minutos do “FMI”. Embora “improvavelmente ser feliz” seja o mais provável. Estou a tentar promover saúde a quem não a tem, a quem a possui e a quem pensa que nunca esteve doente. Saber e conhecer também é ter saúde e pensar é ser salutar. Quem nunca conheceu alguém que tenha sofrido um transtorno mental? Acredito que preferencialmente ninguém goste muito de falar nisso. Permitam-me a indolência portanto e perdoem-me a insolência. Eu conheço. Não um, nem dois, mas muitos indivíduos que pelo menos uma vez na vida estiveram mentalmente doentes. Mas não estou a falar de doença nenhuma por enquanto. Os meus propósitos são o medo, o preconceito, o estigma e sugerir-vos um estímulo para a estratégia, uma promoção, ou talvez e tristemente uma ideia paralítica sem alvor nem poente. Exponho-vos um caso que ficcionei agora mesmo e espontaneamente a partir da minha experiência profissional sublinhando que casos semelhantes são muito frequentes. Espero que faça o leitor pensar: Maria ouve o seu filho durante a noite a vaguear pelo quarto balbuciando palavras sem nexo. No dia seguinte convence-o a ir dar uma volta de carro e ouvir um pouco de rádio, pode ser a M80, a sua preferida. Há dias em que o seu filho – Miguel – não sai do quarto. É uma vitória tirá-lo de casa. Maria tem de aproveitar esta oportunidade, já tinha tudo combinado lá no Hospital… Na consulta. Lá… na… psiquiatria. “Há anos que é assim”. “Miguel é um bom rapaz” repete a mãe ao senhor doutor. Agora sugiro ouvirmos JP Simões -“ Ele é que não”. Maria acha que o rapaz ficou assim por causa de um desamor no liceu. Miguel não toma banho desde o dia em que saiu apressado com 2 contos para comprar o “Silence becomes it” dos Silence 4 na discoteca do centro comercial. “Ia oferecê-lo a uma amiga, mas depois ela, afinal tinha um namorado e…” ele não voltou a tentar falar com ela noutro dia. Agora as unhas do Miguel são longas, irregulares e estão bastante sujas. Os dedos indicadores e médios de ambas as mãos estão amarelecidos pelo fumo do tabaco. Miguel sente-se bem a fumar. O cabelo tem verdadeiros ninhos de tudo um pouco o que o leitor se possa atrever a imaginar. O olhar de Miguel esgueira-se por entre as nossas sombras, preso ao chão, evita-nos constantemente. Miguel está a transpirar. Não consegue sentar-se. O seu incómodo é brutal. Anda pelo consultório mirando a porta por onde entrou com a ambivalência esdruxula de saber que a porta está aberta e que pode sair mas teme verdadeiramente decidir sair. Sem ir nem ficar, reponde aos apelos para que se sente com um quase imperceptível “sim” e um trémulo “tá bem” mas não se senta, nem tenta. O internamento é decidido ali mesmo. Ansiolíticos, neurolépticos, estabilizadores do humor, anticonvulsivantes – a farmácia é um mundo. E ainda a escuta activa, a insónia total, a acatísia… alguém que o ajude. O Miguel quer sair já. Os enfermeiros sugerem com cuidado que ele tente tomar banho: “nem que seja só passar por água”. Tentam fazer um ensino para a saúde de um jovem adulto que se esqueceu do porquê de tomar banho. Recusou comer. Parece-lhe que a comida do hospital tem um cheiro estranho, como se estivesse algo a mais no prato dele que não está no prato dos outros doentes. A mãe ao ver o seu sofrimento a aumentar, assina o termo de responsabilidade para a interrupção do tratamento. Leva-o de volta para casa. Para o quarto de onde não saiu durante anos. “Nem deu para o limpar” disse Maria quando ligou de volta pedindo perdão pela situação. O tempo passa e Maria experimenta ir a uma reunião de cuidadores informais de doentes com doença mental grave que se realiza semanalmente num espaço cedido pelos paços da cidade. O grupo de cuidadores é orientado por enfermeiros de saúde mental e psiquiatria. Equipa da qual eu faço parte. Quando perguntamos a Maria como ela tem passado ela responde: “O Miguel está bem, agora vejo que ele está bem, ele é assim e eu aceito-o. É o meu filho.” Voltamos a insistir na questão, pedimos a Maria que descreva a sua situação enquanto cuidadora. Ela responde “É isto, eu não tenho muito tempo, mas ele está bem. Mas tenho de sair porque ele já me está a ligar para eu ir… não gosta de estar só” Não voltámos a ver a Maria durante uns anos. Até que a situação piorou e Miguel atacou um primo numa festa de Natal e enquanto tentava agredi-lo gritava: “ porque é que disseste para eu mexer a sopa com os dedos?” Acabou por se fechar numa sala da casa dos tios ameaçando matar-se. Acabou internado compulsivamente. Internamentos longos e angustiantes para o Miguel foram a página seguinte. Maria está mais velha e mais cansada. Hoje vê que o seu filho tem um grave problema. O Miguel nunca irá admitir que está doente. Maria lamenta-se: “Demorei tanto tempo a aceitar isto”. Culpabiliza-se e mais se lamenta: “deveria tê-lo levado para outra cidade com pessoas novas onde ele faria amigos novos e seria normal”. Maria, durante 17 anos nunca disse que o seu filho estava doente até agora. O médico já informou o Miguel e a Maria sobre o nome da doença. Mas a Maria ainda nunca proferiu a palavra. Nem se atreveu a pesquisar em livros ou revistas e se alguma vez é proferida essa palavra na televisão ela muda imediatamente de canal. “Rezo todos os dias pelo meu Miguel, tenho fé que um dia tudo isto passe”. “Quando era mais novo ele era muito meigo e obediente.” (…) “Como é que é possível isto acontecer ao meu filho? Sempre foi tão inteligente…” Miguel já fala um pouco mais: “eu tive um esgotamento. Percebem? Eu não tive uma psicose. Isso são coisas que andaram a dizer de mim algumas pessoas que me queriam mal quando eu jogava à bola, no Benfica… quando joguei com o Pelé” Declaro por minha honra que toda esta história é uma estória que agora mesmo conjuguei através de recortes da memória. Existem muitos Miguéis e muitas Marias que ainda não conseguiram assumir que necessitam de ajuda. O tempo está a contar. Quanto mais prolongadas as agudizações da doença menor a probabilidade de remissão dos sintomas. Não basta ver o filme inspirador “Uma mente brilhante”… A história de John Nash é de facto fantástica. Mas não estamos a lidar com uma questão intelectual. Não se refugiem na convicção de que é apenas uma fase má da vida. Na fase de negação da doença há vários factores preponderantes. A informação é escassa e talvez seja esta falta que mais se evidencia nos medos das próprias pessoas doentes e dos seus familiares e amigos. O desconhecimento é grande. A desilusão é violentíssima. Por vezes oiço: “tínhamos tantos planos para o nosso filho”… Uma criança ouve na escola primária falar sobre gripes, feridas traumáticas, cáries dentárias… a doença mental é um dos problemas quase inacessíveis… Um dos tabus. Sobre saúde mental fala-se pouco. No secundário, nas aulas de biologia falam-se sobre as bactérias, os vírus e as infecções. Todos os temas são indispensáveis. Por vezes questiono-me sobre quando é que chega o momento certo para falarmos sobre outro tipo de doenças. O plano nacional de saúde mental 2007-2016 está em marcha (lenta). Mas não vou dizer que não se está a mudar nada. Vai-se mudando. Peço-vos o reconhecimento de que pelo menos estou a tentar. A comunicação é essencial. Olhos nos olhos sem inseguranças nem medos, que estes trazem-nos o preconceito e a reconfortante insensatez de alguns de nós poderem dizer por enquanto: “não é nada comigo”. Existem pessoas que se referem a eles com um intrigante “ele é…” seguido de um silêncio excomungador e uma pancada no osso parietal com a ponta do dedo indicador. Também existem pessoas que se referem a eles quando necessitam vincar a desconfortável ideia de que neste país está tudo mal e o desgoverno é a maior das incongruências de um altivo semicírculo. Porém também existe gente que ao contrário dos supramencionados está sensível e atento para uma das grandes questões em saúde hoje em dia - a estigmatização do doente mental. Tal como um país inexperiente na democracia, a saúde mental tem ainda um ciclo evolutivo recente. A psicanálise e os psicofármacos são ideias do século XX e só mesmo a partir dos anos 50 dessa era foi possível esquecer as realidades negras que fragmentavam a humanidade da pessoa doente mental. O estigma é um comportamento, uma atitude. São palavras e ações. O estigma deriva do medo. Deriva do receio do desconhecido. O estigma é ostracismo, é chacota, é desprezo. Aliás, o preconceito que leva a pessoa a estigmatizar outra advém da ignorância. Temos um problema. Procuramos um culpado? Não. Precisamos de uma solução. A triste mania de perante um problema procurar primeiro um responsável é por si mesmo um problema maior por isso. Primeiro que tudo: simplifiquemos e não façamos como nas democracias inexperientes que repetem os erros governativos todos os anos. Se eu agora derramar sobre este texto a palavra esquizofrenia, o pensamento semiadormecido e as questões sobre o verdadeiro sentido deste artigo ser de índole política extravasa-se num pensamento quase inato que é a tão salutar “dúvida” – um dos fermentos do raciocínio. Eu tenho dúvidas que assim não seja. A pessoa com esquizofrenia, o doente esquizofrénico é um ser humano. Criado e preparado para vencer. Mas algo se precipitou na sua maturação psíquica e a personalidade do individuo entrou num turbilhão violento e imprevisível. Vou destigmatizar. Não, o esquizofrénico não é agressivo, afinal existem pessoas agressivas que não são esquizofrénicas. O esquizofrénico não é preguiçoso pois também existem pessoas que não sendo esquizofrénicas preferem o sofá em vez do trabalho. O esquizofrénico não é drogado. Aliás, a condição humana da dependência de químicos não é exclusiva dos toxicodependentes. E existem pessoas que dependem do álcool e da cocaína e não é por isso que são esquizofrénicos. Então o que é? O Que é um esquizofrénico? Um governo com considerações irrealistas sobre o défice? Um homem que matou a própria família com um cutelo? O jovem homem que violou uma vizinha? Não, não são esquizofrénicos. A esquizofrenia é uma doença da personalidade e atendendo ao facto de todos possuirmos personalidades únicas, duas pessoas com esquizofrenia provavelmente vivenciam a doença de forma totalmente distinta. A sua complexidade é indeterminável. A questão prende-se com o pensamento. E há quem diga que o esquizofrénico é pouco inteligente. Não posso concordar. Uma pessoa com esquizofrenia está instável na sua interpretação da realidade, afectivamente torna-se embotado, por vezes o discurso é desorganizado, o pensamento é rápido demais para produzir a palavra certa no momento certo. Mas se já foram funcionais a reabilitação é possível com o tratamento certo em tempo certo. O doente mental deverá ser tratado e cuidado em ambiente comunitário pois é na integração/reintegração que residirá a base para o sucesso do tratamento. Como pode um doente aceitar a sua própria doença se todos em seu redor rejeitam o seu diagnóstico e preferem falar sobre outros problemas? Para mim é um privilégio partilhar este meu ponto de vista com o leitor. Não tenho preconceitos suficientes para me arrepender do que penso e em nenhuma palavra procurei ferir ou atacar as suscetibilidades de quem possa ler. Sugiro que se leia o livro do Sr. Dr. Pedro Afonso - “Esquizofrenia”. Leia-se sem medo. Está melhor escrito do que este humilde texto e é acessível e esclarecedor a quem procura esclarecimentos. Sejamos esclarecidos. Haja espaço à diferença pois é ela que nos faz evoluir. E para terminar ouçamos “Os loucos estão certos” dos Diabo na Cruz. Esta sugestão solta-se um pouco do preconceito. |