Opinião
SAÚDE
05/01/17
05/01/17
Hugo Sanches é especializado em saúde mental e psiquiatria e mestre em enfermagem de saúde mental e psiquiatria pela Escola Superior de Saúde de Leiria desde 2012. Para ele a luta continua no serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Castelo Branco.
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Música e TerapiaÉ demasiado cedo para tudo. Oiço o tema “Music is my radar” dos Blur. Parcialmente rasgado, um colete de couro negro, faz-me pensar. Nas costas do colete, uma estampagem dos Megadeath. Logo a seguir penso no filme Full Metal Jacket e automaticamente em Wagner… Mas instantaneamente percebo que estou errado, deveria estar a pensar no filme Apocalypse Now e na “Cavalgada das Valquírias” (composição de Wagner) a servir de banda sonora para um massacre que se confunde com um passeio de helicóptero. E logo a seguir recordo-me da minha primeira veneração musical: The Doors; que também contribuíram com o tema “The End” para a sonoridade do icónico filme de Francis Ford Coppola. Tenho portanto este pensamento em turbilhão sentado na carruagem do metropolitano repleta de gente. No reflexo da janela posso observar os demais passageiros à vontade. A maior parte das pessoas estão compenetradas nos smartphones ou nos atacadores dos sapatos. Uma menina segura fortemente a mão da sua mãe. Um grupo de jovens também me observa com desdém. Aceito este comportamento. Parece-me bem.
Observo novamente a estampagem dos Megadeath… heavy metal logo por baixo. O mais pesado que ouvi recentemente foi o álbum de punk rock do Tiago Lacrau: “Sou imortal até que Deus me diga regressa” que é um dos melhores sermões que já ouvi em toda a minha vida. Embora confesse que não tenha ido muitas vezes à missa. Não estou seguro mas o metal mais pesado conhecido é o Irídio com o número atómico 77 e cujo símbolo químico é Ir. Para onde vou agora? Só me interessa ir e lá chegar. Ainda há uns dias me casei com uma saxofonista. E sempre que posso oiço com ela o “My favourite things” tocado pelo John Coltrane. Assim até parece que a música estará em cada um de nós que a possamos ouvir. A música tem esta força. Sendo uma forma de comunicação. Sendo um poema cantado ou instrumentalizado. Tanto faz. A mais subtil das melodias ou a mais abrupta da “batucada”. Não importa se é comercial. Não interessa se é “dançável”. A música é sobretudo a música que todos precisam que ela seja. Uma franca melodia ao gosto de quem a ouve pode ser lenitivo, incentivo, ou ignição de um outro processo criativo. A música pode fazer dormir, relaxar ou encantar. Irrompe frequentemente no sistema límbico fazendo emergir a pele de galinha em nós. Isto é o que a música nos faz. Melhor do que um ansiolítico, melhor do que um daqueles suplementos para a concentração. Melhor do que aqueles outros suplementos com cálcio e outras coisas boas. A música é melhor. Embora também na horrível guerra seja a música um instrumento de propaganda ou de incentivo, eu prefiro ligar a música para o melhor que existe no ser humano: a sua incontestável necessidade de comunicar. No meu leitor de Mp3 começa o tema “AFG” dos portugueses Sensible Soccers e subitamente o metropolitano acelera epicamente. A música tem esta força. Mas sim… Sei muito bem que nem todos a ouvem. Não falo apenas de quem não ouve, de quem sofre de anacusia (surdez total). Falo também de quem não alcança. De quem não está próximo da música. De quem embora não sofra de anacúsica ou hipoacúsica não pode ouvir música já que outros sons embalam a sua existência. Apesar de tudo, a expressão musical é uma comunicação muito mais complexa do que uma pauta do dó, ré, mi; do fá ao Sol, do Lá ao Si… A forma como o músico comunica não deverá apenas ser sonoro. Penso que os famigerados júris dos programas televisivos de talento musical estarão talvez de acordo com isto. A música é som, é instrumento, é movimento, é pensamento, é interação, é comunicação. Afinal não é apenas ouvindo que se sente a música. Na minha mais distante juventude havia sempre um rapaz que ia para a discoteca dançar e que era constantemente motivo de comentários tais como: “aquele não é surdo?”. É. E talvez não ouvindo mas sentido de todas as outras formas do verbo sentir, esse rapaz dançou até a música acabar. Ele precisava da música pelo que esta o fazia sentir mesmo sem nunca a ter ouvido… “Que força é essa?” diria o grande Sérgio Godinho. Em Portugal, a Associação Portuguesa de Musicoterapia tem vindo a ajudar a desenvolver esta força. No seu lugar eletrónico, na internet, podemos ler artigos científicos que sublinham a importância da musicoterapia no tratamento e no cuidado da pessoa com demência. Aos interessados deixo no fim deste texto o endereço do sítio na internet e do artigo “Musicoterapia e Demência – Perspetivas Atuais” redigido por uma Musicoterapeuta certificada: Maria Gabriela Nicolau. Tenho observado de forma extemporânea algumas pessoas que receberam musicoterapia como coadjuvante no tratamento da sua doença mental ou psiquiátrica e o feedback geral é largamente positivo. Oiço palavras como calma, paz, alívio, conforto, segurança. Compete ao musicoterapeuta continuar o seu trabalho para a muitos rostos devolver sorrisos. E o musicoterapeuta não oficial pode estar em qualquer lugar onde haja música. Para quê tomar tantos comprimidos se podemos dispensar dois ou três e sentir a música? Afinal como sobrevivem as rádios se a televisão já se mostrou tão mais evidente há tantos anos? Sentir a música pode ser a resposta. Quase sem querer, de forma breve ou de forma continuada, dia após dia, cada um de nós procura um pouco de música para encontrar nela a calma, a paz, o alívio… um pouco de conforto, um pouco de segurança. Olhando novamente à minha volta percebo que a pessoa com o colete rasgado desapareceu… seria Megadeath ou Motorhead? ZZtop? Os Metallica? Já não tenho a certeza. Num só salto chego à porta da carruagem do metro. Quase perdia a minha estação. Queria terminar com a alusão à música dos R.E.M. “Man on The Moon”. Ou então mencionar o tema dos New Radicals “ You get what you give” ou até melhor ainda com uma música do Boss AC “ Tu és mais forte” para dar o melhor dos empowerments… Mas o metropolitano deixou-me num centro comercial e oiço “Jingle Bells” e parece-me muito bem. A música é que manda! Trago a carteira parcialmente vazia. …“Oh Jingle all the way!” Associação Portuguesa de Musicoterapia: www.apmtmusicoterapia.com Musicoterapia e Demência – Perspetivas Atuais: http://media.wix.com/ugd/c50dbf_342e13351c2a4581be592ef53fed6a95.pdf |