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Opinião
LITERATURA
​03/11/16
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Jorge Almeida é doutorando no Programa em Teoria da Literatura na FLUL, estando actualmente a escrever uma tese sobre dandismo. Ocasionalmente, faz critica literária em jornais (Observador) e revistas (Forma de Vida).

Uma pessoa que fala como uma personagem de Dickens.

Várias são as pessoas a quem aconteceu protagonizar ou presenciar momentos em tudo idênticos a episódios descritos numa qualquer obra literária. Não falo apenas da quantidade avultada de pessoas que deram por si a fumar cigarros pensativos, mas também daquela minoria a quem já aconteceu ser detido nos instantes seguintes a acordar depois de uma noite de sono tranquilo. Também numeroso é o conjunto daqueles que conhecem alguém que se parece em momentos de fúria com Aquiles ou com Hamlet nas inclinações para a melancolia. E não somos todos, uns mais e outros menos, Emma Bovary desejando uma vida mais agitada quando atacados por um quotidiano entediante? Na velha discussão em que se questiona se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte tem-se constatado que as acções e o carácter de determinadas personagens literárias são inúmeras vezes semelhantes às acções e ao carácter de muitas pessoas e vice-versa.

Dá-se também o caso interessante de existirem parecenças entre o discurso de certas personagens literárias e o discurso quotidiano de pessoas que conhecemos. Digo interessante porque não me refiro às semelhanças existentes entre o “Quer alguma coisa, minha senhora?” dito pelo merceeiro do meu bairro à minha vizinha e o “Quer alguma coisa, minha senhora?” dito pela Juliana de O Primo Bazílio à sua patroa (o que não significa que não haja interesse num qualquer projecto de investigação que aborde ‘a perpetuação de certos usos da linguagem portuguesa oitocentista na cultura portuguesa contemporânea’). Considero mais interessante, por exemplo, aqueles casos em que alguém no seu discurso quotidiano imita deliberadamente (e nem sempre humoristicamente) um determinado estilo literário. É o caso de Bloch, personagem de Em Busca do Tempo Perdido, que usa constantemente o estilo ‘neo-homérico’ nas situações mais corriqueiras, como aquela em que opta por dizer “tire um pouco deste prato de pesadas coxas de gordura, sobre as quais o ilustre sacrificador das aves derramou abundantes libações de vinho tinto” em vez de dizer, por exemplo, “faça o favor de se servir”. Em tempos conheci alguém que, depois de ter lido os poemas homéricos num curto espaço de tempo, tentava realizar o mesmo exercício, mesmo sem saber da existência desta personagem de Proust.

Acontece também encontrarmos pessoas que, menos deliberadamente, parafraseiam personagens de Orwell, de Voltaire e de Fitzgerald por afinidades políticas, por afinidades filosóficas ou por razões completamente insondáveis. Há ainda aqueles casos em que determinada frase de certo personagem se tornou tão popular que chega a ser usada abundantemente no discurso público sem que muita gente saiba que está a citar uma passagem literária; o exemplo maior desta espécie será, muito provavelmente, o ‘ser ou não ser, eis a questão’. Devido a um qualquer mistério do destino, pode até dar-se o caso isolado de alguém, desconhecendo que está citar uma obra literária, dizer durante um almoço em família: “Bonito! Eu há mais de meia hora no eirado passeando – e sentada a olhar para o rio a ver as faluas e os bergantins que andam para baixo e para cima – e já aborrecida de esperar… e o senhor Telmo, aqui posto a conversar com minha mãe sem se importar de mim!”. Todavia, estes casos, na hipótese muito improvável de acontecerem, são esporádicos e deles só com muita imaginação se pode inferir que o discurso quotidiano da pessoa X se parece com o discurso da personagem Y, quer em termos de conteúdo quer em termos formais (trazendo para a ribalta esta velha ideia tão querida no ensino secundário).

Posto isto, não deixa de ser curioso quando conhecemos uma pessoa que fala exactamente como uma personagem literária, sobretudo quando sabemos que essa pessoa não o faz deliberadamente, não o faz por qualquer tipo de afinidade com o tipo de estilo dessa personagem, não o faz por o tipo de discurso dessa personagem se ter tornado popular ou sequer minimamente conhecido em determinado círculo, e que não o faz de forma esporádica, mas sim constantemente. Ora, isto tudo serve para mostrar o meu fascínio pelo facto de conhecer uma pessoa que, apesar de nunca ter lido uma linha de Dickens, fala exactamente como uma personagem pouco conhecida da obra do romancista inglês. Esta personagem, Josiah Bounderby, aparece em Tempos Difíceis e tem reiteradamente este tipo de discurso quando faz a sua autobiografia, algo que também faz de modo obsessivo:
 
“Foi esse o berço da minha infância, uma caixa de ovos velha. Mal cresci o suficiente para fugir, é claro que fugi. Tornei-me, então, um jovem vagabundo e em vez de uma velha me bater e me fazer passar fome, eram pessoas de todas as idades que me batiam e me faziam passar fome. Tinham razão: não tinham obrigação de fazer outra coisa. Eu era um incómodo, um ónus e uma peste. (…) Superei-o sem que ninguém me tivesse estendido uma corda. Vagabundo, moço de recados, vagabundo, operário, porteiro, amanuense, gerente, sócio da firma, Josiah Bounderby de Coketown.”
 
As semelhanças a que faço referência não se limitam ao número significativo de vezes em que a narração da própria vida irrompe intempestivamente e completamente de modo inoportuno pelo resto dos assuntos, nem ao auto-elogio de certas virtudes como a perseverança na adversidade ou a capacidade para prosperar no mundo profissional; elas estendem-se a tudo, desde as imagens da precariedade de um berço já de si precário à insólita ideia de que as pessoas agiram de forma correcta ao tratá-lo com os piores modos possíveis simplesmente porque é assim que devem ser tratados todos aqueles que já anteriormente eram assim tratados, passando pelo modo singular de terminar o seu auto-retrato com uma enumeração de cargos profissionais que desemboca, invariavelmente, na apresentação do seu nome próprio associado à sua mais recente conquista social ou profissional. A probabilidade de encontramos este elevado grau de adequação entre o discurso de uma personagem literária e uma pessoa que conhecemos é tão baixa que, julgo, deve ser motivo de celebração e, talvez, motivo para que continuemos a ler e a conhecer pessoas. Quem sabe se um dia destes não vos acontece deparar com uma Albertine num banco de jardim, com um Raskólnikov no comboio para a Azambuja ou com um primo vosso numa tragédia grega? Se vos acontecer, pelo sim pelo não, avisem-me. Eu gosto de saber estas coisas.

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