Opinião
FUTEBOL
04/10/16
04/10/16
Nuno Amado é doutorando no Programa em Teoria da Literatura, aguardando actualmente a defesa de uma tese sobre Fernando Pessoa. Como acredita que as pessoas podem gostar em simultâneo de coisas muito diferentes, costuma conciliar o interesse pela literatura com o interesse pelo futebol. É um dos fundadores do blogue Entre Dez, onde escreve, com mais ou menos regularidade, desde 2007.
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O Futebol e o Bacalhau à Brás: A falácia dos princípios de jogoEntre os mais reputados académicos, e entre os muitos pensadores independentes que, gastando o dia a julgar que os olhos lhes não mentem, vêem numa partida de futebol apenas aquilo que lhe ensinaram a ver, é mais ou menos consensual que a arte de bem jogar futebol obedece a uma receita qualquer, a uma sucessão de passos que, uma vez cumpridos, permitem necessariamente a concretização de um objectivo ulterior. É isso que justifica a convicção, manifesta em todos os que assim pensam, na existência de princípios de jogo universais, de normas básicas que toda e qualquer equipa procura cumprir, seja qual for o modelo de jogo que as defina, a estratégia de jogo que estiver delineada ou, simplesmente, as circunstâncias de cada jogada. Para quem assim pensa, jogar futebol não é muito diferente de fazer bacalhau à Brás.
À luz desta concepção prescritiva do jogo, sempre que uma equipa recupera a bola, passa de imediato a preocupar-se com o assalto à baliza contrária. Nesse sentido, desenvolve automaticamente uma acção de penetração (o primeiro dos supostos princípios ofensivos), a qual tem por finalidade criar uma situação de finalização. De modo a contrariar essa acção de penetração, a equipa que acabou de perder a bola desenvolve, por sua vez, uma acção de contenção (o primeiro dos supostos princípios defensivos), cuja finalidade é impedir a progressão do adversário e a criação de tal situação de finalização. Como reacção, cabe aos colegas do portador da bola tentarem criar situações de superioridade numérica no ataque. Para tanto, disponibilizam-se para executarem uma determinada cobertura ofensiva (o segundo dos supostos princípios ofensivos), a qual deverá ser combatida, pela equipa adversária, mediante a execução de uma determinada cobertura defensiva (o segundo dos supostos princípios defensivos), que visa, evidentemente, evitar a inferioridade numérica na defesa. A eficácia das duas equipas na execução de tais princípios estabelecerá um equilíbrio de forças, pelo que importará à equipa que permanece com a posse de bola fazer algo para desequilibrar o adversário. É neste contexto de equilíbrio e igualdade numérica que se aplica o terceiro dos supostos princípios ofensivos, o da mobilidade, que se caracteriza por acções de desmarcação cujo objectivo é, justamente, provocar desequilíbrios e situações de superioridade numérica em determinadas zonas do ataque. Em oposição, compete à equipa que defende repor os equilíbrios defensivos e a igualdade numérica nessas zonas, o que consegue ao aplicar o terceiro dos supostos princípios defensivos, o do equilíbrio. O impasse gerado por todas estas acções e reacções só será quebrado se a equipa que ataca conseguir encontrar novas linhas de passe e novas condições de penetração, pelo que deve desenvolver acções que conduzam à criação do espaço necessário para tal, o quarto dos supostos princípios ofensivos. Uma vez que, à equipa que defende, interessa precisamente o contrário, que o adversário não descubra novas linhas de passe e não obtenha novas condições de penetração, é da sua responsabilidade reduzir o espaço e desenvolver acções de concentração, o quarto dos supostos princípios defensivos. Há, claro está, outros modelos de catalogação dos princípios de jogo, que contemplam mais ou menos princípios, mas este é suficientemente intuitivo para que se compreenda o quão falacioso é qualquer modelo que pressuponha a existência de tais princípios. Imagine-se, como exemplo prático, que um jogador da equipa A intercepta um passe da equipa B no meio-campo. Tendo espaço à sua frente, tal jogador decide progredir com a bola e, havendo ensejo disso, penetra na zona defensiva da equipa B, de modo a aproveitar o espaço e a desorganização da equipa adversária. Ao mesmo tempo que a equipa A, na pessoa do portador da bola e dos colegas que o acompanham, desenvolve essa acção de penetração e a consequente acção de cobertura ofensiva, parece competir à equipa B impedir que isso aconteça. Para tal, há-de haver um jogador da equipa B (aquele que, à partida, se encontrar mais próximo da bola naquele momento) que se esforçará por se colocar entre a bola e a baliza adversária, e hão-de haver jogadores que, complementando essa acção de contenção, se encarreguem de oferecer uma cobertura a esse posicionamento defensivo, de modo a que a acção de penetração da equipa adversária não prossiga mediante um drible ou um passe, e a acção de cobertura ofensiva não estabeleça a superioridade numérica intencionada. A partir deste momento, os jogadores da equipa A que não o portador da bola movimentar-se-ão de modo a oferecerem novas linhas de passe e a criarem novas situações de superioridade numérica, e os jogadores da equipa B movimentar-se-ão para impedi-lo. Tudo isto parece relativamente óbvio e indisputável. Não haja dúvidas, aliás, de que esta é uma descrição normal, ainda que particularmente bizarra, de algo que acontece frequentemente, num jogo de futebol. O problema é o carácter obrigatório e prescritivo de tudo isto; o problema é o pressuposto de que uma equipa age compulsivamente, a cada momento, em função do objectivo ulterior de chegar ao golo, caso tenha a bola, e em função do objectivo ulterior de impedir que o adversário chegue ao golo, caso não a tenha; o problema, em suma, é a ideia de que a cada acção, a cada movimento e a cada decisão subjaz um determinado princípio de jogo que importa tentar cumprir. Que uma pessoa ou um conjunto de pessoas tenha em vista um qualquer objectivo ulterior não obriga, seja em que actividade for, que cada acção realizada por tal pessoa ou tal conjunto seja um meio para a obtenção desse objectivo. É preciso alguma boa-vontade, por exemplo, para tolerar a ideia de que um jovem estudante universitário cujo principal objectivo é licenciar-se se alimenta todos os dias, a horas mais ou menos decentes, para terminar o seu curso. As pessoas coçam-se porque têm comichão, mesmo quando estão empenhadas em mudar uma lâmpada. E às vezes ouvem música, discutem o imperativo categórico de Kant ou cortam um dedo sem querer, enquanto preparam o refogado do bacalhau à Brás. O mesmo se passa num jogo de futebol. O objectivo ulterior do golo não obriga uma equipa a agir sempre em função desse objectivo. Há momentos, inclusivamente, em que o objectivo de uma acção se esgota na própria acção: circular a bola de modo passivo, apenas para desgastar fisicamente a equipa adversária, quebrar o ritmo de jogo ou gerir a vantagem no marcador; pontapear a bola para longe da sua área, de modo a defender-se de uma ameaça iminente; simular uma lesão e pedir a entrada em campo da equipa médica, a fim de queimar tempo; etc. Muitas vezes, são as circunstâncias de jogo (o lance em causa, o resultado que se verifica nessa altura, o tempo que ainda falta para jogar, as instruções do treinador), e só elas, que determinam qual a acção a privilegiar. Estou a ser modesto. Em futebol, são sempre as circunstâncias de jogo, e só elas, que determinam a acção a privilegiar. Por que motivo deve o jogador do exemplo, depois de interceptar a bola no meio-campo, progredir obrigatoriamente com a bola e, havendo ensejo disso, penetrar obrigatoriamente na zona defensiva da equipa B, de modo a aproveitar obrigatoriamente o espaço e a desorganização da equipa adversária? Por que motivo não deve antes, enjeitando a oportunidade de progredir e penetrar na defesa contrária, conservar a bola acabada de recuperar e passá-la a um colega? Por que motivo deve a equipa A desenvolver obrigatoriamente acções de desmarcação para provocar desequilíbrios e situações de superioridade numérica em determinadas zonas do ataque, e não, pelo contrário, circular a bola sem outra intenção que não a circulação da mesma? Continuo a ser modesto. Por que motivo deve a equipa A atacar apenas em momentos de superioridade numérica, e apenas por onde houver espaço? Por que motivo se desencoraja um passe para um colega que estiver marcado, ou numa zona em que a equipa adversária tiver vários defensores? Tal passe não implica necessariamente que caiba a esse colega a condução do ataque por essa zona. E não lhe cabe essa tarefa precisamente porque nem todos os passes servem para a equipa se aproximar do objectivo ulterior do golo. Esse jogador pode sempre devolver a bola a quem lha passou, assim que a receber, sem que, com isso, produza necessariamente uma acção inconsequente: enquanto recebe e devolve, a defensiva adversária desorganiza-se provisoriamente, na medida em que, para reduzir o espaço na zona de acção desse jogador, abre forçosamente espaço noutras zonas. Mesmo que não traga benefícios imediatos, um passe nestas condições pode, portanto, trazer benefícios à equipa que ataca, e não deve ser negligenciado em nome de nenhum suposto princípio de jogo. Um dos principais argumentos deste texto é o de que não existe uma relação causal entre o objectivo ulterior do jogo e cada uma das acções realizadas por uma equipa em campo. Cada uma dessas acções pode aproximar a equipa desse objectivo, mas também pode não o fazer. Se assim é, é absurdo falar em princípios de jogo universais. Decidir progredir com a bola e desenvolver uma acção de penetração assim que se intercepta um passe no meio-campo, por exemplo, não só não garante qualquer sucesso como não aproxima necessariamente a equipa desse sucesso. Nesse sentido, tal decisão não pressupõe o cumprimento de um suposto princípio de jogo; é uma decisão como outra qualquer, imposta pelas circunstâncias de jogo. Achar que uma equipa fica mais próxima do sucesso quando reage às quatro ou cinco situações gerais do jogo aplicando os quatro ou cinco princípios de jogo correspondentes é, por conseguinte, um disparate. O futebol é muito mais complexo do que isso. É um jogo de circunstâncias atípicas, que só muito vagamente se parecem entre elas, e que, como tal, não admite este género de sistematização. Uma vez que, à mesma situação geral de jogo (a recuperação da bola depois da intercepção de um passe no meio-campo, por exemplo) podem subjazer diferentes circunstâncias de jogo (o jogador que recupera a bola pode estar sozinho ou acompanhado, a equipa que perde a bola pode estar desequilibrada defensivamente ou não, o resultado do momento pode ser favorável ou não, etc.), não faz sentido reagir a cada uma dessas situações gerais sempre da mesma maneira, de acordo com um conjunto de supostos princípios de jogo. Com efeito, jogar futebol é ligeiramente mais complexo do que demolhar o bacalhau, cozê-lo durante uns minutos, desfiá-lo, fritá-lo brevemente no refogadinho, juntar-lhe a batata palha e os ovos, envolver tudo, decorar com azeitonas e polvilhar com salsa no final. |